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Letícia Laet

DEPOIMENTOS

08/2016

Letícia Laet

Orgulhosamente, apresentamos nosso primeiro depoimento.

Letícia Laet conta sobre sua determinação, perseverança e convivência com a Síndrome de Usher e segundo ela, sentiu mais leve, livre e aliviada ao escrever este texto inspirador! 

Ela perdoou o Usher

Usher,

Você me desafia todo dia. Mas foi assim que comecei a gostar 
de desafios. Tornam a vida mais interessante e mais valorizada.

Você testa minha paciência todo dia. Você dificulta as pequenas coisas no dia a dia que eu faço como ouvir a voz dos meus parentes ao telefone. Entender filmes brasileiros sem legenda. Entender uma letra de música. Compreender os professores de costas ou de longe. Entender meus amigos ao mesmo tempo em uma conversa. Mas só tenho um par de olhos para anotar no caderno, ver no quadro negro e ler os lábios ao mesmo tempo de uma pessoa, não de duas. Nem de três.

Mas dou um jeito, acho uma solução. Cedo ou tarde. Fácil ou não. Rápida ou demorada. Sem ou com ajuda. Com fracasso ou com sucesso. O segredo é tentar até conseguir. Como todo mundo. A vida não é fácil para ninguém.

Você me empurra, eu caio. Meu equilíbrio é torto. 
Às vezes, demoro para me levantar. Mas me levanto, não importa quanto tempo eu levo. Quando surge uma dificuldade, tenho alguém por perto que me levanta. Com hematomas que vão embora rapidinho e não deixam nenhuma marca. É como se eu nunca tivesse caído. E é uma delícia meus amigos segurarem minha mão com força sem eu pedir. 
E sinto amor forte e puro nas mãos deles me segurando com cuidadinho. Então, falta de equilíbrio é uma coisa linda. Hematomas são breves, o amor não é. O jeito que eles me seguram é tão bonitinho quanto ver um filhotinho dormindo. É uma das coisas que mais amo na minha vida.

Você me deixou com medo assim que te descobri depois de se esconder por 25 anos de mim. Mas, finalmente, depois de dois anos com um pouco de medo... Você não me assusta mais. Eu tenho o poder no meu corpo, não você.

Você nunca vai tirar a independência que conquistei ao longo desses anos que tanto lutei. Nunca. A independência é maior que você e vai somando.

Não te odeio mais. Eu te perdoo, não importa se você nem é uma pessoa, apesar de ter nome de pessoa. Você é cruel, só quem sabe é quem tem mesma coisa que eu. Mas quer saber? Você não é a pior coisa do mundo. Não é culpa sua. Aconteceu e ponto final. Eu estou lidando com você. 
Eu estou lutando, sempre para ter uma vida feliz e mais tranquila. 
Por mim e por meus amados. Me cuidando, treinando, comendo bem, etc.

Você me fez acreditar que eu não era capaz. Você me faz acreditar que eu sou capaz.

Eu te culpava por quase me fazer ser atropelada por um ônibus que senti na ponta do meu nariz em segundos. Eu te responsabilizava por me fazer perder informações importantíssimos que perdi em reportagens sem legenda, ficar perdida em diálogos extraordinários com as pessoas falando ao mesmo tempo na faculdade, nos jantares, nas festas, eu te culpava por me fazer cair de escadas sem corrimão e quebrar o braço. Mas não te culpo mais.

Quero dizer, uma parte é culpa sua, sim, mas não a inteira. A culpa é falta de acessibilidade. A culpa é minha. A culpa é da cultura errada em que devemos falar tão rápido que às vezes chegamos a engolir palavras, principalmente as belas.

Sem querer te ofender, mas você não me define. Nem a deficiência. Você só faz parte de quem sou eu. Pequeninha parte. 
Mais uma vez, não quero te ofender, mas você não é grande coisa. Há coisas piores. Há coisas melhores ainda. Você não é meu pior inimigo.

Chega a dar pena de te ver tão desconhecido até para os grandes médicos. E há poucos que têm você, mas não sabem disso. Você chega aproximadamente em cinco em cem mil pessoas no mundo. Você é raríssimo. E invisível. Mas por outro lado, você é agressivo, muito presente na minha vida e nos outros.

Quando te descobri, eu não queria te apresentar nem a minha família, meus amigos por meses. A maioria até ficou sabendo por terceiros. Me isolei um pouco, me foquei em responsabilidades da vida. Precisei de tempo pra assimilar todo esse tempo. Para pesquisar. Para te conhecer. Para me conhecer melhor. Não queria assustar ninguém. Não sabia como contar. Mas agora que te superei, te apresento ao mundo. Sem vergonha. Sem medo.

Você não me diminui. Até quando pago mico, eu rio como uma criança. Para que a vergonha? Não consigo ver em todas direções ao mesmo tempo. Ou olho pra cima ou pra baixo. Ou pra um lado ou para o outro.
Se foco em um lado, vou tropeçar no outro. Me levanto e estou pronta para errar de novo e rir de novo. É um hábito. Tropeçar, não enxergar de longe, não ouvir bem não é vergonhoso. Às vezes é até engraçado. Não tenho vergonha de dizer que não entendi algo. Fingir ser perfeita é tedioso, uma chatice. E dai que não ouvi? Repetem. E dai que tropeço? Me levanto de novo.

Mas não se preocupe. Eu vou te apresentar ao mundo. 
Com a contribuição dos médicos, dos familiares, dos amigos, das fonoaudiólogas, dos outros portadores que também vão te apresentar. Vamos tirando sua máscara. Para todo mundo saberem o que você é. Para todo mundo ficar atento a você. Para quem tem você ter uma linda vida. Porque a vida é linda. Apesar de tudo. Felizmente, você está ficando famoso.

Mas, nossa! Você me fez cara! Aparelhos auditivos, pilhas, implantes cocleares, cirurgias de olho, terapias de fonoaudiólogas, exames, mapeamento genético, remédios, óculos, consultas de médicos, viagens para São Paulo, para Miami.. hahahahahahah

Sabe o que ia ser bom? Você entrar na pessoa por 24 horas. Não, só por 1 hora que é suficiente. Não para entender como eu sinto, de jeito nenhum. Mas para dar mais valor a audição. A visão. Ao equilíbrio. 
As pessoas amadas. Pequenas coisas da vida. A grande força de ter mais paciência. A arte de falar devagar, apreciar as palavras, os sons engraçadinhos. Notar que somos mais fortes do que pensamos. 
Que podemos ir além do limite. Que o cérebro é o órgão mais poderoso do corpo humano.

Mesmo com você nas minhas veias, no meu cérebro, no meu coração, na minha visão, eu me considero a mais sortuda do mundo. 
O amor, apoio e fé dos meus amados só me fortalece mais ainda. 
E que amor! O amor supera tudo. Clichê? Não me importo. 
Eles são minha vida. O amor deles só me faz mais forte ainda, só me motiva mais, só me faz querer mais. Eles não sabem, mas foram eles que me fizeram te superar, mesmo não sabendo naquela época quem era você.

Você é o destino de me fazer tornar uma fotógrafa e designer, conhecer meus amigos mais amados do mundo, querer ajudar os outros, com deficiência ou não, com uma família lindíssima? Não sei. Não importa. Só sei que o destino é destino. E eu estou feliz com meu destino.

Você me causa dor que se tranforma em vitória. Não é só minha. É da minha família, dos meus amigos, meus colegas de trabalho e de faculdade, das minhas chefes e dos meus professores. Isso não tem preço. E sou diariamente grata a eles.

Então... Obrigada.

Sua portadora.

Lelê com piano no braço e com hematomas em forma de cometas nos joelhos.

Letícia Laet - fotógrafa e estudante de design de comunicação visual

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