PORTAL VOLTADO PARA PESSOAS
COM SÍNDROME DE USHER
E A SEUS FAMILIARES, PROFISSIONAIS E AMIGOS
ENTREVISTAS
01/2022
André Luiz Mendes Siqueira
André, 42 anos,
nasceu e mora em Ribeirão Preto,
interior de São Paulo.
Ele nos conta como lida
com os desafios diários
em ser surdocego
e também mais detalhes
sobre como descobriu
a Síndrome de Usher.
Entrevista gentilmente traduzida de Libras para Português pela Adriana Aparecida Moreira Siqueira (esposa de André). Nosso muito obrigado pelo trabalho!
1) André, conte para nós como foi que descobriram sua surdez
Sou surdo desde bebê. Sempre fiz acompanhamento no Hospital das Clínicas aqui de Ribeirão Preto. Passava com fonoaudióloga, apesar das tentativas, para mim foi difícil a leitura labial e desenvolver a fala. Na época, os médicos queriam que eu fizesse implante coclear, mas minha mãe não aceitou por medo da cirurgia e por aceitar eu ser surdo sinalizado.
2) E na escola? Você não teve dificuldades para acompanhar as aulas?
Sim! Quando comecei a frequentar a escola que era de ouvintes, tive sim muitas dificuldades. Nessa época, a inclusão não existia e a comunicação era por alguns sinais. Eu não era alfabetizado em Libras e também não era alfabetizado em português. Tinha um grupo de estudos na UNAERP (Universidade de Ribeirão Preto) e lembro de um professor surdo, André e com ele eu comecei a ter mais contato com pessoas que usavam Libras.
3) André, conte para nós, quando e como você percebeu que você tinha problemas visuais.
Desde os 6 anos de idade, quando comecei frequentar a escola, eu já usava óculos e os graus foram aumentando gradativamente. Antes disto, meus pais já haviam se se separados, eu ainda era bem pequeno, mas aos 15 anos de idade já sentia aquela dificuldade em enxergar. Nesta época, meu pai ficou muito doente e ficou várias vezes internado. Um dia, recebi a notícia lá na escola de que meu pai havia falecido e isto foi um choque para mim e a partir daí eu sentia uma certa pressão, dores em meus olhos, e percebia que eu não estava bem. Após esse episódio, os problemas da visão foram aumentando, minha mãe me ao Hospital das Clínicas e faziam vários exames da visão e ao mesmo tempo o grau de meus óculos foram aumentando, até o dia que se fechou o campo visual. O dia que aconteceu isto foi numa manhã, eu acordei, fui ao banheiro, escovei meus dentes mas percebi que estava escuro, estava enxergando muito pouco, a minha visão tinha fechado mais ainda! E aquilo me assustou e aí eu comecei a gritar, chorar muito. Minha mãe, assim como toda minha família vieram correndo para saber o que estava acontecendo comigo. Foi um dia marcante na minha vida... não sabia que eu estava ficando cego... Foi muito difícil no começo. Aí novamente fiz uma bateria de exames e descobriram que eu tinha retinose pigmentar e logo depois soube que era Síndrome de Usher.
4) A partir daí você passou a ter acompanhamento periódicos com retinólogos?
Naquela época, consultar com retinólogo era complicado. Então eu passava pelo HC, eles analisavam o meu caso e até prescreveram vitamina A para eu tomar, mas isso não retardou o processo da perda visual. Os médicos fizeram todas as tentativas, mas nada de melhorar...
5) E como está sua visão hoje?
Ainda enxergo muito pouco... tenho pouco resíduo visual, mas enxergo vultos, é embaçado também devido a catarata que está se desenvolvendo.
6) No começo como foi a sua adaptação como uma pessoa surdocega?
No começo foi muito difícil eu me adaptar... Eu andava nas ruas, mas tropeçava, caía, batia a cabeça, sentia medo... As pessoas estavam diferente comigo. Eu fiquei muito isolado, não tinha contato com outras pessoas, entrei em depressão... A minha família não podia fazer muita coisa, porque não tínhamos recursos. A única forma de eu me sair desta era eu me adaptar a esta condição... então eu fui treinando para isto. Na época a gente morava em uma chácara então fui treinando para andar dentro de casa, fazer os deveres como lavar louça, limpar o chão, dobrar roupas, mas tinha muito serviço para fazer no quintal. A minha família começou a observar que eu criei coragem e deixou eu fazer os trabalhos de casa. Fui treinando para saber onde eram os cômodos: cozinha, quarto, banheiro... E cuidava dos animais, tanto que até eles se adaptaram comigo... rs Eu dava comida para os frangos, e alguns deles até bicavam no meu pé...rs Eu também sabia onde era o chiqueiro, tínhamos 8 porcos e eu sempre os alimentava. Também tínhamos 10 cachorros, um deles era pastor alemão e tinha um cachorro que tinha só uma orelha e fiquei muito triste quando ele morreu. Fazia tudo isso em casa e foi assim que fui me adaptando.
7) Sua família então também se adaptou bem?
Sim, é claro que no começo não foi fácil... Muitas coisas eu tive que deixar de fazer... assistir televisão por exemplo. Para acompanhar jogo de futebol pela TV, os meus irmãos falavam como estava o jogo. Todos foram aprendendo a comunicar comigo pelos gestos. Tem certas coisas na vida que eu tive dificuldades com a minha família, mas fui me adaptando...
8) Há mais casos de pessoas surdas, cegas ou surdocegas na sua família?
Tenho várias pessoas na minha família que são surdos, mas a comunicação deles não é por libras, eles são oralizados. Tinha um tio avô, já falecido, que trabalhava em plantação de cana de açúcar e consumia muito disto e era diabético, tinha problemas de visão e surdez... então nem tudo é genético, tem que tomar cuidado. Portanto, eu sou o único surdocego na família.
9) Você continuou estudando mesmo após ser diagnosticado como surdocego?
Bem... eu estudei bastante em escola que tinha sala especial, mas encontrava barreiras que até então não era possível de serem quebradas naquela época... Foi o período para aprender a comunicação oralizada, mas foi bem difícil, porque nós surdos não podíamos usar a línguas de sinais para comunicar e sim tentar de alguma forma para falar. Isso era complicado para mim. Mesmo sendo surdocego, queria levar uma vida normal, e um dia isto mudou quando conheci a Adriana, hoje minha esposa. Ela foi voluntária, me ajudou na tradução de libras, libras tátil e também o braile. Uma vez eu ganhei um curso de mecânica e a minha esposa também recebeu essa bolsa, fizemos esse curso em 2018 por 3 meses e foi muito bom para mim! Todos ficavam admirados com a minha habilidade em desmontar um motor de carro e montar de novo, isso era bem legal. Eu amo desmontar e montar de novo. Fiz também curso de panificação, de jardinagem e de manutenção de computadores (montar e desmontar). Gosto de aprender e por isto eu sempre procuro ocupar minha vida com cursos.
10) André, como você e Adriana se conheceram?
Então em 2006, no mês de dezembro lá no Curso ADEVIRP (Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto e Região) que era perto da faculdade UNAERP, a minha professora falou que ia apresentar uma outra professora amiga dela. E na época todo mundo ficava admirado quando eu lavava carro e, portanto, ela quis me apresentar a Adriana que nunca teve contato com um surdocego. Eu e Adriana conversamos bastante, ela percebeu que eu tinha pouca noção de Libras e no fim, ela me convidou a ir na igreja dela, onde tinha curso de libras e outros amigos surdos sinalizados. Fiquei contente pelo convite, falei com minha mãe e alguns dias depois nos encontramos na igreja onde ela frequentava. Lá conheci outros surdos que se comunicavam por libras e com o tempo fui aprimorando essa comunicação, porque a minha Libras era muito básica e mais para frente fui me acostumando também com a Libras Tátil. Nessa época também estudei braile, mexer na máquina braile e a Adriana me ajudou muito na tradução. Com o tempo eu e Adriana começamos a namorar. Eu tinha desejo de comprar um par de alianças, mas não tinha dinheiro por que eu não conseguia trabalho e aí alguns de nossos amigos compraram e nos deram de presente para podermos ficar noivos. Casamos e estamos juntos há 14 anos.
11) André, para você quais são os desafios em ser você ser surdocego casado?
Acredito que os desafios são os mesmos de uma pessoa sem deficiência casada. É claro que tenho minhas limitações... eu por exemplo sonho em trabalhar em uma empresa que até hoje não consegui. No fato da Adriana estar trabalhando eu não posso receber meu LOAS, o que dificulta ainda mais a nossa situação financeira. A Adriana sempre foi minha guia intérprete, sempre me ajudou e eu gostaria também de ajuda-la e o máximo que posso fazer é cuidar da casa, das nossas filhas e cuidar da manutenção da casa. Eu sei instalar chuveiro, já troquei de tomadas... A Adriana outro dia ficou espantada que eu troquei a tomada na lavanderia sem ela saber, porque geralmente eu faço estas coisas na presença de alguém, mas eu queria arrumar o mais rápido possível e fiz tudo sozinho... Ela levou maior susto ao ver tudo pronto... rs
12) E para você como pessoa com Síndrome de Usher quais são os desafios em ser pai de 2 filhas?
Eu sinto orgulho delas! Mesmo sendo surdocego, as meninas conversam comigo, são fluentes em libras tátil. Elas também são minhas guias-intérpretes. Fico contente em poder ajudá-las no café da manhã por exemplo. Posso não fazer tudo, mas tenho orgulho delas.
13) Para você quais são as maiores dificuldades em ser surdocego na sociedade?
O desconhecimento sobre a surdocegueira é muito grande, e por isto tenho o sonho de realizar palestras, compartilhar sobre minha experiência com esta condição. Já fiz parte de empreendorismo, participei em várias mídias, uma delas no programa de Fátima Bernardes, Folha de São Paulo, etc... Mas ainda acho que precisamos divulgar mais sobre a surdocegueira: falta muito para conseguir formar a verdadeira inclusão do surdocego na sociedade. Existe muita discriminação e preconceitos por acharem que somos incapazes de trabalhar, de estudar, de ter uma família... A falta de guia-intérprete também dificulta muito. Já tivemos a experiência de participar de um grande encontro sobre surdocegueira onde tinha muitas pessoas na área, tinha grandes nomes do meio de intérpretes, mas naquele momento faltou empatia, não nos ofereceram um guia-intérprete. Minha esposa estava com minha filha bebê no colo e ela mesmo assim teve que fazer esforço de ser intérprete, traduzir para mim sobre o que estava passando... Apenas Mariana Campos que ofereceu ajuda. Ela mesmo sendo surda sinalizada e minha amiga de infância, fez o “espelho”: ou seja, ela olhava o intérprete e adaptava para mim em libras tátil, porque sou surdocego. Foi uma experiência incrível e portanto somos muito gratos à ela! Espero que o acesso a intérpretes, um dia melhore... Temos que lutar.
14) Na região onde vocês moram não tem serviços de acessibilidade ao surdocego?
Até agora não tivemos auxílio de guia-intérpretes e por isto trabalhar com formação destes profissionais seria muito importante e é um sonho que eu e Adriana queremos realizar.
15) E como foi a sua experiência durante a pandemia da Covid-19?
Foi extremamente difícil! Eu e minha esposa pegamos a Covid, para ela foi um pouco mais brando, mas no meu caso foi mais grave: tive pneumonia e fiquei com um pulmão comprometido. Não foi fácil! Além da pandemia, tivemos que lidar mais uma vez com o isolamento e as dificuldades financeiras. Tivemos que mudar de casa maior que alugamos para uma casa menor ao lado da casa da sogra. Adriana teve que trabalhar em home office e eu ficava ansioso para saber como estavam as coisas lá fora, mas com o lockdown limitou mais nossas saídas. Antes da pandemia eu estudava, e depois a maioria dos cursos foram online, mas para um surdocego isto complica e necessito sempre da Adriana junto comigo para traduzir. Tivemos que nos adaptar com o fechamento de várias escolas, limitar as visitas, lidar com a diminuição de transportes... houve muitas mudanças, foi um período muito ruim... Eu ficava muito preocupado porque não recebo nenhum benefício e queria muito trabalhar para ajudar Adriana, mas só em casa mesmo que eu posso ajudá-la. Recebemos algumas doações que nos ajudou muito, mas não tem sido fácil. Sabemos que é importante a conscientização sobre os cuidados a respeito do vírus. Já tomamos as 2 doses da vacina, estamos aguardando a terceira dose e vacinar as meninas também.
16) André que conselho você dá para uma pessoa que acabou de saber que tem a síndrome de Usher?
Olha... é muito importante a gente treinar, adaptar com a nova condição... Ser surdocego não é pior coisa do mundo, mas tenha calma, você vai conseguir superar esta fase, assim como eu superei, me adaptei. Espero que eu tenha ajudado contando minha experiência. Portanto tenha coragem!
Assista ao vídeo da entrevista de André Siqueira no programa de Fátima Bernardes:
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